Clemir Fernandes/Contribuição especial

“Livre-nos Deus” foi o primeiro nome de Araguaína (TO) dado pelos habitantes pioneiros (séc. XIX) por medo de animais ferozes e também de indígenas (Carajás) que viviam na região. Depois ganhou a nomenclatura Lontra devido ao mamífero do mesmo nome frequentador do rio, igualmente chamado Lontra, que cortava o lugarejo. O nome definitivo, Araguaína, resultou de outro rio, o famoso Araguaia, que divisa as terras do município com o estado do Pará.

Livre-nos Deus poderia ser uma petição plausível ainda hoje dos 170 mil habitantes da cidade, não mais por temor da fauna feroz que praticamente desapareceu; nem ainda por causa dos indígenas, obviamente, mas certamente por justificado medo de certos animais humanos, tidos como civilizados, em sua virulência contra o patrimônio histórico e cultural da cidade.

Se conscientes ou por ignorância – é possível que seja a segunda opção – o resultado dessa iconoclastia é algo a lamentar, a se preocupar e a se precaver. Refiro-me, principalmente, a uma dimensão arquitetônico-religiosa da cidade para algumas ligeiras reflexões sobre a identidade sócio-espacial e cultural desse lugar que povoa minha memória e que aprendi a chamar também de meu.

Começo pelo templo católico da Igreja Matriz, cuja edificação original remonta à década de 1950 e que foi derrubado já nos anos 90 em nome de uma suposta modernidade para dar lugar a outro, mais espaçoso, ali na praça que tinha um nome cosmopolita (“das nações”) e que foi rebatizada com identificação provinciana. Se o antigo que foi alvo da fúria demolidora não possuía destacada riqueza arquitetônica tinha, entretanto, reconhecido valor histórico e era, indiscutivelmente, mais belo – com suas largas paredes, verticais vitrais coloridos e piso decorado – que o atual, construído em seu lugar. Que a rigor, é desprovido de beleza ou arte. Sem falar que tomou parte da rua – um espaço público – em frente ao templo!

Ao fazer estas e outras criticas abaixo, não há aqui ofensa a qualquer religião – afinal toda crença merece respeito – mas apenas o lamento pela destruição de espaços simbólicos que testemunhavam uma trajetória sócio-cultural da cidade. Afinal se trata de monumentos físicos, carregados de história, que desaparecem da paisagem e se apagam da memória social quase que para sempre.

De forma similar aconteceu com espaços de outros grupos religiosos, como os templos adventista e batista. O primeiro, na rua Tocantins esquina da Sadoc Corrêa, com suas amplas janelas típicas de arquitetura eclesiástica em forma de circunflexo, foi impiedosamente derrubado, nos anos 90. Já o templo batista, na Rua Souza Porto, sofreu radical intervenção em sua fachada no começo dos anos 1980 e posterior reforma nos anos 2000, inclusive com a retirada de sua simbólica torre.

O templo da Igreja Presbiteriana, no início da Av. Cônego João Lima – que é um cartão postal da cidade e, certamente, a edificação de maior valor arquitetônico e histórico de Araguaína a se manter de pé - sofreu alteração no seu interior e mais recentemente na fachada, com uma ampliação lateral. Uma grande e grave descaracterização do belo edifício projetado e construído com apoio de missões estadunidenses. Que edificaram dois outros templos essencialmente semelhantes. Um na cidade de Imperatriz (MA), que foi completamente destruído na mesma sanha iconoclasta em troca de terreno para templo mais amplo, e o outro em Gurupi (TO), que acredito esteja ainda em pé.

Será que nenhum vereador da cidade mais importante do Tocantins, excetuando a capital (que praticamente ainda não tem história), se apercebe disso e estabelece uma lei de tombamento do patrimônio – que não é particular, mas social – visando sua preservação?! Antes que tudo vire pó ou seja completamente modificado!

A construção de novos templos na cidade – que não precisava ser pela substituição demolidora dos antigos – tem revelado um mal gosto tão evidente que até parece obra da prancheta de arquitetos goianos recalcados pela perda da antiga e boa colônia onde tudo era explorado, como ocorria antes da divisão que resultou na criação do Estado do Tocantins! Permitam-me essa tentativa, bem humorada, de buscar explicação para a enxurrada de destruição da memória histórica e iconográfica de Araguaína. E a arquitetura de tais novos templos com estética duvidosa – para não dizer de jeito mais preciso, porém menos elegante – podem ser tipificados exatamente nos santuários católico e batista. Entretanto, nem tudo é desventura, é bom que se diga. O novo templo da Igreja Adventista bem como da Paróquia S. Sebastião (igreja do Ten-ten) são dois exemplos animadores.

Se tivesse ocorrido a manutenção dos edifícios sagrados, mais que um testemunho histórico dos tempos, seria um fator de formação cultural para futuras gerações, que poderiam ver e tocar tais espaços, conhecendo sua história, a trajetória de seus antepassados, a partir dessa dimensão religiosa, que é uma das identificações mais indeléveis de um povo. Até porque não existem prédios públicos (estatais) dignos de maior destaque na cidade.

Neste aniversário de 57 anos de emancipação de Araguaína faço deste texto inquieto um singelo presente à cidade, que poderia ser um espaço de turismo histórico, cultural e religioso de um Estado que tem apenas 26 anos de história! Entretanto, há ainda o que recuperar e preservar, antes que seja tarde demais.

Deus, livra-nos da falta de memória e de preservação da história! Para nosso bem-estar e das gerações depois de nós.

Perfil do autor

 Clemir Fernandes é  sociólogo e professor universitário, pesquisador do ISER, Rio de Janeiro, RJ. Ele viveu em Araguaína dos 2 aos 18 anos de idade, participei da luta pela criação do Estado do Tocantins.