Luiza Helena Oliveira*

París, França-Tento em vão me concentrar no trabalho, a despeito de não ter TV e não assistir aos jogos online, sem ter feito grande esforço para ver como seria então possível diante da primeira frustrada tentativa. Acompanho os efeitos dos gols da Alemanha sobre a seleção brasileira lendo as postagens no Face e pelos gritos que ouço advindos de torcedores nas proximidades de meustudio, na Cité Universitaire. Os gritos se somam e eu imagino a goleada implacável.

Sofro muito, infelizmente. Não com o jogo, mas com os efeitos, os discursos que vão se somando há meses, numa lógica que me escapa e que se acirrarão frente a esse resultado. Porque futebol e política andam juntos, numa complexa relação que tem história, talvez numa lógica inapreensível para um estrangeiro. Já os vejo enquanto corre a partida. Uma pessoa posta: “Venha para casa. O Brasil é um fracasso”. É de um país ou de um jogo que se trata?

 Num bom diálogo com um querido amigo, enquanto corre o jogo (ainda não terminado enquanto escrevo), discutimos o que é esse efeito do futebol sobre a cultura brasileira. Essa metonímia que nos arrebata de modo talvez inconsciente, como se a nação estivesse lá, que aquilo tivesse algum efeito real sobre nossa vida. Nessa lógica, não é o time que perde, mas o Brasil que é derrotado. Prato cheio para o discurso conservador que ganhará as páginas dos jornais, ancorado pelo tom pretensamente pesaroso do apresentador do Jornal Nacional, na manipulação previsível de sempre. E comprado barato pelos desavisados, para quem os anos de progresso econômico não representaram aumento de capacidade de reflexão além da superfície. É isso que me angustia, não o efeito da ausência de Neymar.

O gosto pelos jogos deve estar na alma da cultura humana desde sempre (minha formação em antropologia não é tão grande) e deve ser um substituto para o enfrentamento da guerra. A propósito, encontro no Face alguém propondo que Stalin saberia como enfrentar os alemães. Ou que desde a II Guerra os alemães não haviam derrotado um país desse modo. O raciocínio metonímico se multiplica. E vai ecoando, poderoso, sabe-se lá aonde pode chegar.

 Certamente podemos compreender essa adesão passional pelo fato de que aprendemos desde cedo a amar o futebol, nesse nosso aprendizado de pertencimento ao país denominado Brasil. As fotos de bebês no Face, com roupinhas verde-amarelo são prova cabal do modo como isso vai sendo ensinado literalmente desde o berço. Há uma mídia, um grande comércio, a insistência das transmissões, mas há também o lúdico, a graça, o inusitado de uma partida, a emoção que afeta o torcedor, a beleza de um bom drible, o gol de placa, a torcida, a experiência sensível. Quem negaria o encantamento pela agilidade dos jovens rapazes em desenho imprevisto no gramado? E o que dizer da grandiosidade das imagens colhidas pelos competentes fotógrafos das páginas esportivas da imprensa que conferem ares de deuses aos jogadores?  São então Apolos, ainda que muitas vezes sua beleza seja menos clássica e os cortes de cabelo tenham gosto duvidoso. A beleza é a do gesto, da performance. As fotos registram tão bem a perfeição do gesto, que um desatento pode subitamente apaixonar-se pelo futebol, seduzido pelos seus efeitos. E então, uma comoção nacional, uma esperança, um riso partilhado, uma crença em algo que não tem forma precisa, mas que atua fluida sobre os corações brasileiros nesse momento.

 Há talvez quem possa pensar que futebol não é coisa séria. Mas se é parte da cultura, se tem tais efeitos sobre a alma nacional, como desprezar-lhe como objeto de reflexão?

 Nas minhas tentativas de estudar enquanto a bola corre no gramado – em favor do time adversário – encontro palavras do semioticista lituano Algirdas Julien Greimas. A semiótica teria como projeto ocupar-se da cultura. Não se trata de uma ambição, como responde à Jacques Fontanille em entrevista, mas de uma constatação, tendo em vista o que atestavam os objetos acolhidos pelas pesquisas da semiótica e da semiologia até aquele momento (o texto é de 1979).

 Não continuo a leitura e venho cá então para esse texto, talvez confuso demais, porque acelerado, numa sintonia produzida a distância dos meus compatriotas. Uso o artifício do texto  que servirá para minha pesquisa  como se nele encontrasse a absolvição para o sentimento de culpa por deixar o sério (a leitura teórica) pela diversão (o futebol). Greimas certamente me entenderia. É que não resisto à vontade de falar sobre esse instante único, certamente inesquecível, a ser então preservado pelos corações que o vivenciaram com emoção, narrado durante muitas décadas como a grande derrota da seleção brasileira. Meus filhos a contarão para seus netos. É assim, do mesmo modo como lembram dos gols de Pelé e eu ainda trago na memória o hino de 70: “Noventa milhões em ação...”

Mas o Brasil não perdeu nada e esse foi um bom exercício de paixão para a alma nacional. Quanto aos discursos dos derrotistas de sempre, dos que têm prazer em vaticinar o fim do mundo e que se rebolam com o resultado: ah, me poupem. No meu Face não. 

Perfil

Luiza Helena Oliveira da Silva é Professora da UFT, do Programa de Pós-graduação em Letras e do ProfLetras. É  pós-doutoranda em Sociossemiótica. Gentilmente colabora com o Araguaína Notícias.